KOSMOS - Breve pré-história da Ficção Científica - Parte 1



    O termo “ficção científica” surge pela primeira vez nos finais do século XIX. Mas podemos balizar o percurso de uma pré-história da ficção científica como tendo tido início depois do nascimento da ciência experimental moderna. E esta aconteceu com Galileu Galilei e Johannes Kepler no início do século XVII.


    Se Galileu é reconhecido como figura principal na revolução científica, a Kepler, astrônomo e matemático alemão, devemos as três leis sobre o movimento dos planetas, que recebem o seu nome em sua homenagem e que foram base de partida para a formulação, por Isaac Newton, da lei da atração universal.


   O curioso é que grandes divulgadores da ciência e da cultura humana, como Carl Sagan, identificam num destes gigantes da ciência o autor da primeira obra da pré-história da ficção científica. Como disse o poeta cientista, “eles não sabem nem sonham que o sonho comanda a vida”. E de facto parece ter sido pelo sonho de uma viagem à Lua que a pré-história da ficção científica começou.


   O nascimento da ciência experimental moderna e uma incipiente expressão literária que podemos classificar de “ficção científica” conviveram e fertilizaram-se num mesmo tempo e espaço, acto contínuo com o avanço do próprio desenvolvimento científico e tecnológico. Estamos no início do século XVII, na pré-história da ficção científica.


    O astrônomo Johannes Kepler matematizou o movimento dos corpos celestes, numa mecânica fundada no modelo heliocêntrico de Copérnico. A revolução científica assenta nas suas três leis dos movimentos dos planetas, que Kepler divulgou e nos legou no seu livro “Harmonices Mundi” (“Harmonia do Mundo”), publicado em 1619.


    Paralelamente ao seu papel enquanto um dos fundadores da ciência moderna, a par com Galileu Galilei, Johannes Kepler escreve, entre 1620 e o ano da sua morte (1630), um livro autobiográfico e fantasticamente imaginado: “Somnium” – “O Sonho”. Apenas editado em 1634, quatro anos após a sua morte, com o título completo “Somnium sive opus postumum de astronima lunari” (“O Sonho, obra póstuma sobre astronomia lunar”) esta obra, escrita em latim, é considerada por Carl Sagan e por Isaac Asimov, duas figuras incontornáveis da ciência do século XX e da sua divulgação para todos, como o primeiro livro de ficção científica.


    Em “Somnium”, um aluno de Tycho Brahe (muito provavelmente o próprio Kepler) é transportado até à Lua por forças ocultas. Em “Somnium”, o homem olha pela primeira vez na história da humanidade a Terra a partir de uma perspectiva completamente nova. Apresentando uma descrição imaginada e detalhada de como a Terra poderia ser vista a partir da Lua, Kepler faz uma descrição pormenorizada da aclimatação do viajante às condições desoladoras da superfície lunar, projeções que se confirmaram em grande parte pelos astronautas do século XX.


    Esta antecipação imaginativa e preditiva de uma realidade que a ciência e a técnica só tornaram possíveis 350 anos depois, é uma das características que tornam esta obra pioneira do gênero, que melhor se estabelecerá definitivamente nos finais do século XIX.


    Apesar disto, uma outra obra publicada antes do início da pré-história da ficção científica merece referência neste contexto, apesar de ser considerada um texto filosófico. O seu autor é o inglês Sir Francis Bacon, incontornável teorizador e divulgador do método experimental científico desenvolvido pelos seus contemporâneos Galileu e Kepler.

    Num pequeno conto intitulado “A Nova Atlântida”, publicado em 1627, Bacon relata-nos uma ilha prodigiosa e perdida no meio dos mares, cujos habitantes dominavam as ciências e em consequência possuíam tecnologias muito avançadas. Na ilha funcionam várias máquinas e outros inventos que não existiam no século XVII e que, apesar da sua descrição literária e fantasiosa, são de uma antecipação espantosa.


    Mas as viagens à Lua continuaram a ser cenário no palco da pré-história da ficção científica. Na história da literatura mundial é melhor conhecida a descrição da ida à Lua do escritor francês Savinien Cyrano de Bergerac: “Histoire Comique des États et Empires de la Lune” (“História Cômica dos Estados e Impérios da Lua”). Escrita em 1656, faz a primeira descrição de uma viagem espacial até à Lua. Já não são forças ocultas, como no caso de Kepler. Materializa-se a viagem em veículo próprio. É relatada também a forma como um povo imaginário e lunar, os Selenitas, vê os terrestres. Num afastamento telúrico lunar, Cyrano de Bergerac faz editar em 1657 uma sequela: “História Cômica dos Estados e Impérios do Sol”.


    O progressivo conhecimento do sistema solar, acrescentado então pela sistemática observação do cosmos permitida pelo telescópio -- iniciada em Março de 1610 por Galileu Galilei --, expandiu a imaginação literária e fantasiosa para espaços mais afastados da Terra, da Lua e do Sol. Ou seja, permitiu que a imaginação migrasse para além dos astros do dia-a-dia.


    O filósofo francês Voltaire, grande divulgador das ideias da mecânica celeste e da atracão universal do físico e matemático Isaac Newton, escreveu por volta de 1732 um conto de ficção científica intitulado “Micromegas”. Só publicado em 1752, e com o subtítulo “História Filosófica”, Voltaire relata a “viagem de um habitante do mundo da estrela Sirius até ao planeta Saturno”. O viajante é Micromegas, que, ao modo de um Gulliver espacial, visita vários cantos do cosmos e dá-nos conta dos contrastes entre os usos e costumes dos povos que por esses outros mundos astrais vai encontrando.


    Apesar de se tratar de ficção científica tal e qual a dimensionamos hoje, Voltaire lavra o seu conto com a ciência da época e a filosofia de todos os tempos. O principal que se sabia de astronomia e física no século XVIII está dito ou subentendido ao longo do texto.


    No final, Micromegas oferece aos pequenos humanos, nomeadamente ao secretário da Academia de Paris, um livro de filosofia onde diz estar contido o sentido de todas coisas. Mas esse livro encontra-se inteiramente em branco, numa metáfora de que o conhecimento de um cosmos ordenado estará sempre inacabado.


    Há autores que identificam nas várias culturas alienígenas descritas ao longo de “As Viagens de Gulliver”, obra publicada em 1726 por Jonathan Swift, elementos de uma ficção científica de cariz antropológico, em que a fantasia sublinha o espanto das descobertas da zoologia e da botânica, então muito em foco pelas várias expedições naturais-filosóficas efetuadas sob a égide das várias sociedades científicas emergentes no velho mundo ocidental.



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Texto por: António Piedade

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